Encontro Velado

 Encontro Velado

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By Kanesuki



    Eu juro que sou uma boa pessoa! Não julguem errado! Sempre ajudo quem pede, sempre ajo em prol da justiça! Também sou uma pessoa de consciência elevada, diferente dos que me rodeiam. Tanto que as vezes sinto um impulso por manipulá-los, nem que seja por causas fúteis.

    Eu era um estudante de federal. Todos os dias eu ia à cantina comer um salgado no intervalo da aula. Tinha poucos amigos, então na maioria das vezes acabava por ir sozinho.

    Certa vez enquanto eu me engasgava com meu refrigerante que tomei no desespero por ter entalado a massa seca do salgado na garganta, notei que uma garota da mesa ao lado me encarou por um momento e soltou risos meigos.

    Como um feitiço, me senti instantaneamente atraído por ela, é como se toda a minha existência tivesse ocorrido para que eu vivesse esse momento. Quando me recompus, pensei em puxar conversa com ela, mas eu estava hesitante. Um mero mortal como eu indo de encontro com tal deusa? Conte-me outra piada! Mas o que me impediria de falar com ela?

    Dei umas breves olhadas e notei que na mesa dela tinha um livro do meu autor preferido.

    Definitivamente eu tenho chances com tal beldade!

    Porém eu continuava ainda hesitante, decidi tomar umas boas goladas no meu refri para ganhar coragem. Então me levantei e fui à mesa dela.

— Oi, tudo bem? Eu tava notando, cê tá lendo metamorfose?

— Oii, sim, comecei ontem, uma amiga me recomendou.

— Em que parte você já tá?

— Ainda tô no começo, comprei ele ontem, mas o que eu li, tô gostando bastante

 — "em certa manhã, após acordar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa se vê metamorfoseado em uma terrível praga".

— Não era inseto?

— O certo é "praga", por conta da escolha de palavra que o Kafka teve no original. Não tem palavra em português que seja sinônimo da original, mas praga é a que mais se aproxima. 

— Aliás, posso sentar?

— Claro, fica a vontade.

— Que curso cê faz?

— Sou de arquitetura 

— Que legal! Acho interessante a arquiteta antiga.

— Sim sim, eu gosto bastante da neoclássica e da gótica. Aliás, vai ter uma festa da arquitetura, por quê cê não vai? — indagou a deusa enquanto se debruçava na mesa.

— Nunca fui em festa de atlética. Será que vai dar bom?

— Vamos vamos!

— Aliás, qual seu nome?

— Giovanna, e o seu?

— Natan 

    Após essa conversa, fiquei pensativo. Nunca bebi antes, nunca fumei, sequer gosto das músicas que tocam nesses lugares. Por viver apenas de rotina, acabei não me preocupando com meu visual, então resolvi comprar uma camisa social para usar na festa, afinal isso é o que me garantiria uma chance com a divindade. Os lotes estavam acabando, então tive que comprar do mais caro. 

    Conforme o dia se aproximava, eu sentia mais e mais ansiedade, ao ponto de eu não conseguir sair de casa sequer para frequentar as aulas, mas quando chegou a data, me aprontei da melhor forma que pude e fui de Uber.

    Conforme eu chegava perto do local da festa, meu coração palpitava mais e mais, então pedi para o motorista parar num posto para que eu pudesse comprar um maço de cigarros; como eu não entendia disso, peguei o mais caro. De volta no carro, presenciei um acidente, porém o motorista prosseguiu.

    Enfim eu havia chegado na festa e a música estava muito alta já do lado de fora.

    Quando entrei no salão, me espantei; nunca vi tanta gente alterada no mesmo lugar. Como ouvi falar de alguns amigos que o álcool aumenta a sociabilidade, imediatamente me dirigi ao bar do salão, enchi uma caneca e virei em três goladas, intercalando com os cigarros que eu fumava tossindo. Como estava demorando para bater o efeito, decidi experimentar outro sabor; e com isso se foram 5 canecas cheias e metade da cartela de cigarros, sem que eu tivesse a oportunidade de conversar com alguém.

    Decidi andar, cambaleando e quase tropeçando; cheguei a trombar em algumas pessoas, derrubar alguns copos, mas não cheguei a virar para trás para ver se ficaram bravos.

    Ao chegar na parede, decidi ficar escorado enquanto observava o movimento; logo ao longe avistei minha deusa, Giovanna. Ela estava usando roupas da atlética e estava dançando com um grupo que para mim era de estranhos.

    Minha cabeça não parava de girar, a música penetrava minha mente como se dominasse tudo. Quando consegui me desgrudar da parede, vi que a deidade estava conversando com outro cara. Na hora meu coração parou, quis ir embora dali, porém fiquei com mais vontade ainda de ir lá puxar assunto com ela e quem sabe espantar aquele babaca.

    Enquanto me movia com dificuldade na direção deles, ele beijou ela. Foi como se eu tivesse tomado um tiro no coração. Desisti de chegar perto e me dirigi de volta ao bar. Tomei mais duas canecas e desmaiei.

    Acordei do lado de fora do salão. Dei sorte de não terem roubado meus pertences.

    Mas minha cabeça doía muito, porém isso não me impediu de pedir um Uber. Já em casa fui pro meu computador e comecei a stalkear a vida da Giovanna, minha ira era real e me queimava com vigor. Consegui encontrar o instagram dela por conta do perfil da festa que postou fotos de quem estava na festa com marcações. No perfil dela encontrei comentários daquele cara. Portanto pelo curso e semestre, estudei os horários deles pelo site da universidade.

    Passei a seguir o rapaz em segredo, tirando fotos dele e colocando em um perfil de fofocas, inventando as maiores atrocidades sobre ele; coisa que o afetou profundamente.

    Notei que começou a falar menos com as pessoas do bloco dele, que começou a andar cabisbaixo e ficar pelos cantos. Em algumas semanas criei um perfil fake e comecei a xingar e ameaçá-lo bastante, o que o abalou mais ainda. Após um mês, ele estava destruído, parou de se arrumar, de se higienizar e também passou a faltar bastante nas aulas. Minha missão estava cumprida.

    Agora se voltando para a traidora, resolvi marcar um encontro para finalmente concluir meus planos de justiça. Afinal, ela continuou destinada a mim e eu a ela. Me vesti da forma mais elegante possível e fui à sorveteria me encontrar com ela. Tive que esperá-la, já que se atrasou dez minutos. Ao chegar dela, fiquei hipnotizado. Estava mais bela que todas as coisas animadas e inanimadas que já vi na vida. Mas como eu sabia que tinha chances, chamei-a para se sentar.

    O papo fluiu bem, eu perdi o nervosismo assim que começamos a conversar.

    Conversamos sobre filosofia, séries e filmes, tomamos uma taça de sorvete cada um até que ela propôs de andarmos pelas ruas próximas dali. Quase fiquei hesitante, mas a alegria de ter chegado até ali não permitiu. Andamos um bocado, tiramos foto em uma estátua e acabamos em uma rua escura onde eu a beijei. Da festa até aqui tudo deu certo da melhor forma para mim; ou era isso que eu desejava.

    Na festa eu acabei desmaiando após ver aquela cena. Lembro de ter ouvido alguns gritos aqui e ali, o som de uma ambulância, a voz dos enfermeiros e o apito da máquina. Eu que não tinha o hábito de beber, bebi mais que o limite do meu corpo. Fui um idiota. Pois morri de coma alcoólico. No fim eu percebi que não sou bondoso, justo e nem inteligente.

    Toda a figura que formei em meu pensamento era um refúgio para esconder minha verdadeira identidade. Quem diria que eu iria morrer de forma tão patética, sem ter nenhuma realização em minha vida.



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Notas do autor:

Saudosas saudações dou aos prezados leitores. Nunca cheguei a conversar convosco, mas espero que essa primeira vez dê em sucesso.

Esse conto eu escrevi para um prêmio literário da UFMS cujo não cheguei sequer no TOP 10, porém não me deixarei abalar. 

Essa história foi planejada por tortuosos meses e escrita toda em apenas um dia; com o apoio de amigos, é claro. Um desses amigos era uma pessoa muito especial e generosa, de longe uma das pessoas mais marcantes de minha vida. Graças a ele, vivi muitas aventuras e no dia que inscrevi o presente texto no concurso, esse amigo me apoiou e até me deu carona para casa, vejam só.

Bom, esse amigo não está mais entre nós e esse texto serve de lembrança de um desses dias de aventuras. No caso eu fui solicitado por esse amigo a ajudar um estudante do Rio de Janeiro a encontrar um lugar para dormir aqui em Campo Grande MS, já que o mesmo perdera um ônibus para Cuiabá, onde teria atividades de um projeto.

Graças ao ocorrido, tive um tempo no mundo real, longe da sala a qual eu me isolei para compor o texto, o que tornou possível de pôr em palavras a segunda parte do texto.

Bom, gostaria de dar póstumos agradecimentos ao Sr. Luiz Mário pelo apoio, tanto nesse texto quanto no prosseguimento da minha vida de escritor, servindo de inspiração e obviamente sendo uma boa companhia.

Me despeço então dos prezados e peço com todo o sentimento guardado nesse coração mumificado; aproveitem a companhia das pessoas sabendo que um dia elas irão partir, portanto não tenham medo de expressar gratidões, palavras amigas e de apoia-las, pois a morte surda caminha ao nosso lado e não sabemos em que esquina ela vai nos beijar, ou beijar a quem estimamos.

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